Dra. Ana Luiza Chalusnhak | OAB/PR 51.691
É sabido que os cargos públicos, pela regra constitucional contida no artigo 37, II, da Constituição Federal, são acessíveis a todos os brasileiros e estrangeiros, na forma da lei, e dependem de aprovação prévia em concurso público.
Uma vez titular do cargo, o servidor desempenhará a função atribuída a ele, por lei.
Tome-se como exemplo um engenheiro de uma agência reguladora, um professor universitário de uma universidade pública e um auxiliar administrativo de uma secretaria estadual de saúde. Cada um deles deverá atender a um perfil profissiográfico apto ao desempenho de determinadas competências: o primeiro, titulação em alguma das engenharias; o segundo, titulação compatível com as exigências legais (além da graduação, possivelmente lhe seja exigido outro título, tal qual o de pós-graduação, mestrado ou doutorado) e o terceiro, possivelmente o ensino médio.
De acordo com as habilidades exigidas em função das necessidades da atividade que desempenha, a cada um dos servidores será atribuído um rol de competências. Desse modo, o engenheiro, o professor e o auxiliar sabem o que lhes compete, dado que suas atribuições estão descritas em lei.
Considerado este contexto, não é raro, na administração pública, seja ela federal, estadual ou municipal, que o servidor seja desviado de sua função. O desvio de função pode se apresentar nos casos em que o servidor é demandado com competências alheias às que são atribuídas ao cargo que titulariza.
Assim, não se pode exigir do auxiliar administrativo, que atenda um paciente enfermo; ou do engenheiro, que emita um parecer jurídico. Tanto no primeiro caso quanto no segundo, estar-se-á diante de flagrante incompetência do servidor.
Age com incompetência, aquele servidor que, seja por proatividade, ou por obediência a um comando hierarquicamente superior, desempenha tarefas que não se encontram dentro do seu rol de atribuições.
No entanto, não basta o exercício de competências estranhas para caracterizar o desvio de função. Isto porque, tratando-se de situação pontual, o desvio de função não se configura. Imagine-se, para tanto, um contexto extraordinário no qual o efetivo é chamado a atender, circunstancialmente, situação alheia às suas atribuições, tais como uma calamidade, uma emergência ou até mesmo uma pandemia.
No entanto, nos casos em que o servidor habitualmente desempenha funções diversas das que lhe são atribuídas legalmente, não excepcionais nem transitórias, é possível que se caracterize o desvio de função.
Tome-se como exemplo o caso analisado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, no qual, do agente penitenciário, servidor concursado, foi exigido o desempenho de atividade jurídica não contemplada em seu rol de competências. Reconheceu-se, em favor do agente, o desvio de função, com o devido pagamento das diferenças remuneratórias:
DIREITO ADMINISTRATIVO. DESVIO DE FUNÇÃO. CARGO EM COMISSÃO. AGENTE ADMINISTRATIVO QUE DESEMPENHOU FUNÇÃO DE AGENTE PENITENCIÁRIO. PROVA DOCUMENTAL SUFICIENTE APENAS À PARCELA DO PERÍODO. DIREITO AO RECEBIMENTO DAS DIFERENÇAS SALARIAIS.A Administração Pública se pauta pelo princípio da legalidade, devendo atribuir aos servidores apenas as tarefas relativas às suas funções estipuladas em lei. Se ocorrer desvio de função, ainda que com servidor ocupante de cargo de provimento em comissão, são devidas as diferenças salariais, do contrário configurar- se-ia o enriquecimento sem causa a Administração, pois o servidor exerceu uma função anômala sem ser Apelação Cível nº 1619105-2 remunerado conforme.2) APELO A QUE SE DÁ PARCIAL PROVIMENTO. (TJPR – 5ª C.Cível – AC – 1619105-2 – Curitiba – Rel.: Leonel Cunha – Unânime – – J. 14.03.2017)
Percebe-se, pois, que o desvio de função não pode ser forma de locupletamento ilícito por parte da administração pública, que ao invés de realizar concurso para a contratação de servidores, desvia a função de outros, produzindo, como consequência, menor remuneração do servidor cuja função foi desviada e obtendo dele, desempenho de atividades estranhas ao seu rol de atribuições.
Por este motivo, estabelecendo ser devida, ao servidor em desvio de função, a remuneração adequada, o Superior Tribunal de Justiça, através da Súmula 378 estabeleceu que “Reconhecido o desvio de função, o servidor faz jus às diferenças salariais decorrentes”.
Ressalte-se, contudo, que o desvio de função não é uma forma de provimento ao cargo, não havendo fundamento legal para o pleito de acesso à outra carreira ou reenquadramento.
Em conclusão, o desvio de função ocorre quando o servidor desempenha atividades alheias às suas competências, com habitualidade. Nestes casos a jurisprudência pátria reconhece ao servidor, o direito à percepção das diferenças remuneratórias, inclusive com seus reflexos, tais como décimo terceiro, férias e, em alguns casos, até mesmo a progressão.